sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Nara em entrevista a revista mundo jovem.


Dionária da Silva Santos,
pedagoga e militante do Movimento Negro mocambo odara, Jequié, BA.
Endereço eletrônico: naraodara@yahoo.com.br


Mundo Jovem: Como viveram e como vivem os negros no Brasil?

Dionária da Silva: No tempo da escravidão, no regime escravista, o negro vivia em condições subumanas, tratado como animal. Não era uma relação patrão-empregado. O negro era tratado com indiferença total. Depois da abolição, não mudou muito essa realidade, porque a população negra foi marginalizada, foi entregue à própria sorte, sem nenhuma proposta de inclusão na sociedade.

Hoje existe nos bairros periféricos, nos pequenos, médios e grandes centros urbanos, uma concentração da população negra. E daí vêm os maiores índices de desemprego, de baixa escolaridade, analfabetismo, que estão entre a população negra. Se olharmos os presídios, o maior número de detentos também vem da população negra. Se observarmos as vítimas das chacinas, o perfil também é de pessoas jovens, de 14 a 25 anos, e também proveniente da população negra. Então, a situação da população negra no Brasil é de total descaso, em estado de marginalidade mesmo.


Mundo Jovem: E a questão do racismo, você a vê como uma questão cultural?

Dionária da Silva: Sim, com certeza. O racismo foi construído e, dentro desse processo, vem passando por vários elementos. Aqui no Brasil a gente tem como racismo mais específico a questão da religião. A população negra sofre muita discriminação nesse sentido. Sabemos que as religiões africanas sofreram e continuam sofrendo um processo de diabolização. São vistas como cultos demoníacos e há um total desrespeito à cultura africana, de não aceitar um determinado povo, quando se nega os hábitos culturais desse povo. Mas vemos o racismo no Brasil também pela questão da cor.

Algumas pessoas falam que existe um problema social. Mas a questão social é só um agravante, porque o que existe mesmo é um preconceito em relação aos aspectos físicos, que envolve a cor, o cabelo (porque o natural do negro é ter o cabelo crespo). Quando um jovem negro vai num local, por exemplo, procurar um emprego, é negada a sua entrada. Ele é logo visto como um marginal, bandido... Muitas vezes acaba sendo marginal, porque é assim que ele é visto pela sociedade.

Aliás, a nossa sociedade vê a população pobre como mais suscetível a produzir bandido, ladrão, por causa da condição social. E aí o negro, por esta condição de se encontrar numa situação de marginalidade, acaba sendo associado a esta imagem de ser um bandido e este preconceito está ligado ao aspecto físico da população negra.


Mundo Jovem: Mas este racismo é um racismo velado? Por que se diz que não existe mais racismo no Brasil?

Dionária da Silva: Claro. Existem dados estatísticos que dizem isto e a sociedade insiste em afirmar que não há racismo. Mesmo que o mito da democracia racial tenha sido derrubado, ainda insistem nesse discurso de que neste país não há discriminação, que vivemos num país miscigenado, onde convivem várias raças. Mas nós sabemos, através de pesquisas e dados estatísticos, que ainda existe um alto percentual da população negra em situação de analfabetismo, de desemprego e uma série de coisas.

A questão do racismo ser velado é o que mais dificulta o combate a ele. Existem nos movimentos negros os intelectuais empenhados no combate ao racismo, mas o racismo não existe às claras. A gente vai percebendo como o racismo acontece, seja no contexto educacional, seja na área da saúde, e muitas vezes a própria população negra acaba não percebendo e isso contribui para o racismo se reproduzir.


Mundo Jovem: A consciência negra está crescendo no país?

Dionária da Silva: Sim. A luta destas várias entidades negras de todo o Brasil, a intervenção de pensadores negros, têm conseguido ampliar o nível da consciência negra. E, ao mesmo tempo, percebemos pelos dados estatísticos, pelos índices do IBGE, que o percentual de população negra aumentou. A leitura que se faz a partir disso é que as pessoas estão começando a se aceitar, aceitar sua identidade de negro. Com certeza isso é fruto dos movimentos, dos pensadores e das políticas públicas de afirmação, seja de educação, de saúde, de moradia, que chamamos de políticas afirmativas ou políticas de reparação social. Estas iniciativas tentam reparar os resquícios que ficaram do período da escravidão no país.

A questão das cotas, por exemplo, tem sido uma luta muito grande. Muitas universidades já adotaram esse sistema e a nossa grande luta é que seja adotado nas universidades públicas, em todos os cursos. Através da força da luta dos jovens negros, muitas pessoas, hoje, estão começando a rever os seus conceitos.


Mundo Jovem: Que tipo de argumentos você usaria na defesa do sistema de cotas?

Dionária da Silva: Primeiramente, o sistema de cotas é uma ação afirmativa de reparação social. O principal argumento que a gente usa para a defesa do sistema de cotas é baseado em dados estatísticos que revelam que o número de pessoas negras nas universidades é muito pequeno. Nas regiões onde existiam universidades, o número de estudantes negros era de 0,1% a 1%. Daí foi feito um estudo para levantar o porquê de haver poucas pessoas negras na universidade. Vieram à tona todos aqueles elementos da condição social em que o negro se encontra.

Sabemos que a partir do momento em que a população tem acesso à escola, tem maior nível de escolaridade, melhora sua condição social e a condição do contexto em que vive, porque desta forma a pessoa tem sua consciência crítica ampliada. O sistema de cotas seria uma das formas de incluir uma população que, historicamente, foi penalizada, roubada em seus direitos de pessoa humana, de cidadã. Seria uma forma de devolução da dignidade, de pagamento de uma dívida que o estado brasileiro tem para com a população negra.

Entendemos também que o sistema de cotas é uma forma mais imediata de aumentar o número de pessoas negras dentro das universidades. Havia uma descrença entre os jovens negros estudantes, e hoje há uma expectativa de cursar o nível superior, se sentir incluído.


Mundo Jovem: Já dá para comemorar alguns resultados nesse sentido?

Dionária da Silva: Com certeza, porque as pessoas que combatiam o sistema de cotas argumentavam que com isso iria diminuir o nível intelectual das universidades, porque as pessoas que entrariam através da cota teriam um nível de conhecimento inferior ao das outras. Mas isto não é verdade, porque a pessoa que entra através do sistema de cotas passa pelo mesmo processo de seleção dos outros, é avaliada da mesma forma. A diferença é que existe uma reserva para os cotistas. Elas disputam entre si, o que aumenta o grau de dificuldade.

De qualquer forma, existem pesquisas comprovando que as universidades que adotaram o sistema de cotas têm apresentado o mesmo nível de desempenho e de desenvolvimento. Inclusive há dados apontando que alguns cotistas têm um melhor aproveitamento do que os alunos não-cotistas. Então, este mito foi derrubado e foi constatado um aumento da população negra nas universidades, assim como o aumento de jovens envolvidos nas políticas públicas de inclusão. Isso consideramos uma vitória.


Mundo Jovem: Essa luta da consciência negra não é uma luta só dos jovens negros. O que você diria aos jovens brancos sobre a luta contra o racismo?

Dionária da Silva: Diria exatamente isso: que a luta contra a discriminação racial é uma luta de todos nós brasileiros, de todos os cidadãos, porque é uma luta pelo resgate da cultura brasileira, já que a nossa cultura é formada também por todos esses elementos que constituem a cultura brasileira. Isso vai contribuir para o desenvolvimento intelectual e social de toda a sociedade e para a nossa própria humanização.


Consciência negra
e o racismo brasileiro

Cada ano, em novembro, crescem em todo o Brasil as comemorações ligadas ao dia da união e consciência negra. Desde alguns anos, a data do martírio do Zumbi dos Palmares se integra no calendário nacional. Antes, poucos livros de história do Brasil contavam que, em 1695, senhores de engenho, bandeirantes vindos de São Paulo e militares de Pernambuco invadiram o Quilombo dos Palmares, no alto da Serra da Barriga, hoje Alagoas, onde viviam pacificamente mais de 30 mil pessoas - negras, índias e brancas, em uma sociedade livre e mais igualitária. Os invasores, com respaldo da sociedade e da Igreja, mataram milhares de homens, mulheres e crianças. O líder Zumbi dos Palmares, traído por um companheiro, preferiu entregar-se aos inimigos para evitar um massacre maior. No dia 20 de novembro de 1695, foi fuzilado e teve seu corpo esquartejado em uma praça do Recife. Até hoje, na comunidade de Muquém (AL), sobrevivem do artesanato de argila descendentes de alguns sobreviventes do massacre.

Mais de 300 anos depois, as comunidades negras e os quilombos são exemplos de resistência cultural e social do povo negro em meio ao conjunto da sociedade brasileira, ainda injusta e discriminadora. Conforme o censo mais recente, 44% da população brasileira é afro-descendente, mas só 5% das pessoas se declaram negras. Estes dados se tornam mais ainda espantosos quando sabemos que, da população brasileira mais empobrecida, 64% são pessoas negras.

A lei proíbe o racismo, mas mantém estruturas sociais e econômicas que o alimentam. Pode evitar que um viole o direito do outro, mas não tem como levar brancos e negros a se amarem e menos ainda como ajudar cada pessoa a se sentir bem em sua pele e em sua identidade cultural.

No Brasil, os dados oficiais mostram que as desigualdades sociais são mais profundas à medida que as pessoas pobres não só são empobrecidas, mas são negras. O Brasil branco é 2,5 vezes mais rico que o Brasil negro. Nos últimos anos, as diferenças entre negros e brancos vêm se mantendo. Na educação, um branco de 25 anos tem, em média, mais do que o dobro de anos de estudo do que um negro da mesma idade.

Os governos têm procurado solucionar esta desigualdade através de medidas que continuam compensatórias e provisórias, já que a solução mais profunda exige um processo de reestruturação da sociedade, que é lento e muito exigente. Entretanto para quem vive a dor da exclusão social é melhor contar com essas medidas do que viver no desamparo como, durante a história, tem sido, muitas vezes, o destino dos mais pobres.




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